terça-feira, 18 de maio de 2010

Construindo um Icoságono - Capítulo 3


O Trote

“Assim como o primeiro andador, a primeira bicicleta sem rodinhas, a primeira vez em que irá pegar ônibus sem os pais para proteger, a formatura do terceiro ano, a escolha do curso, a ansiedade pelo resultado do vestibular, a primeira matrícula na faculdade, enfim... O trote. Todos esses processos estão intrínsecos ao ser humano, é inerente ao mesmo. O trote é uma espécie de iniciação. Não a iniciação que falamos acima, no sentido de liberdade. Esta é diferente, é uma maneira de integrar todas as pessoas, para assim aproximar os calouros aos veteranos e vice-versa.”


Quem estuda na Universidade Católica do Salvador ou até mesmo aqueles que não estudam lá, sabem da tradição da mesma no que se refere ao trote, principalmente no tocante ao curso de Bacharel em Direito. Não que os outros cursos sejam desmerecedores, mas, este em especial é o mais descolado e curioso.

Era 27 de agosto do ano de 2008, o sol estava brilhando e o dia parecia calmo, tranqüilo, igual aos outros dias, nada diferente a ser percebido. Exceto por um pequeno detalhe. A faculdade estava vazia, pelo menos era o que parecia, primeiro horário – mesmo sendo primeiro horário, ainda assim para a UCSAL não é desculpa de encontrar poucas pessoas em pleno dia em que todos os semestres têm todas as aulas - de uma quarta feira, não havia quase ninguém na faculdade e isso sim me preocupou.

Avistei de cara Marina, amiga de longa data, estudou comigo durante todo o colegial e por coincidência do destino fomos parar na mesma faculdade e no mesmo curso. Uma grande amiga, exceto por uma coisa, seu signo. Marina é Leonina, esse signo de certa forma me irrita, devido a sua dupla personalidade e não é de estranhar que Marina seja o oposto do que caracteriza o seu signo. Até nisso os leoninos são problemáticos. Bárbara tem uma teoria para isso, Leoninos para ela é como “Kinder Ovo”- Aquele chocolate que sempre vinha surpresa em seu interior -, a cada dia uma nova surpresa diferente, por isso, todos eles deveriam ser exterminados pelo seu alto grau de complexidade e em seu lugar deveria existir um novo signo, menos vaidoso e altruísta. Não penso muito diferente, realmente é uma “raça” estranha.

Se existem várias compulsões em uma mesma pessoa pode-se afirmar sem exagero algum que a minha é Seriado e Signos. Por mais que aja apenas uma possível probabilidade do que esteja escrito em sites de horóscopo, verdadeiramente acontecer, ainda assim eu acredito. E há de quem me convença do contrário. Não é para me entender, apenas é para me aceitar.

- Cadê o pessoal? – Perguntei a Marina, surpresa por encontrar poucas pessoas na faculdade.

- “vixi” Moni, é mesmo, tem pouca gente aqui, o que será que aconteceu? – Respondeu-me surpresa também.

- Será que não vai ter aula hoje e o pessoal sabia e ninguém nos avisou?

- Genteee...hoje deve ser o trote, repare bem, os meninos não estão aqui sentados no pátio, não estão em lugar algum,hoje é o dia em que a faculdade fica lotada, deve ser hoje, escreve o que eu to te dizendo – Respondeu Bárbara subitamente.

Não mais que de repente ouve-se uma gritaria vinda em direção ao pátio, todo mundo olhou para vê o que estava acontecendo. Nesse instante aparece a comissão do trote, cada um deles vestidos com a roupa que o particulariza, ou seja, camisas padronizadas com o ano e o semestre do trote – esse seria o 2008.2 -, afinal, é um momento único de se vê e apreciar, er... Apreciará aqueles que estarão de fora, porque os que serão iniciados é uma sensação , digamos, nada agradável, porém tolerável.

Esse trote tinha algo em especial, Eric, o primo de Bárbara que veio de Juazeiro, passou no vestibular da Católica e veio morar em Salvador. Eu não perderia esse momento por nada. Se lá eles fizeram minha iniciação, agora era a minha vez de dar o troco.

Os veteranos subitamente colocaram todos os calouros em suas respectivas salas, alguns veteranos ficavam do lado de fora para não deixar passar ninguém e não ficar entrando e saindo concomitantemente. Por um breve momento houve silêncio. Os veteranos então explicaram a razão do trote e fizeram uma lista de presença para ver quem iria cooperar ou não. Alguns saíram porque não quiseram participar, outros ficaram para ver o que poderia acontecer – risos – o que mais poderia acontecer a não ser o sofrimento aparentemente eterno? – experimente tomar um trote, a sensação que passa é que nunca vai acabar - Pelo menos é melhor cooperar do que se tornar calouro Rebelde – Uma espécie de calouro que não contribui com as expectativas dos veteranos e por isso, sofre conseqüências drásticas, mas nada muito grave -.

Nesse mesmo momento, eu e Bárbara entramos de sala em sala e registramos cada momento com a máquina, filmes foram feitos, fotos foram tiradas, parecia que estávamos em um filme de terror, todos com tinta de variadas cores pelo corpo e com uma mistura de: café em pó, água suja, farinha de trigo, ovos, entre outras coisas que poderia até se transformar em ingredientes para a confecção de um bolo.

Separamos os calouros, - Feminino de um lado, masculino de outro – e automaticamente demos inicio as “brincadeiras”, começamos por “vivo – morto” e terminamos em rixa de calouros, claro, tudo na esportiva. Amarramos os calouros na corda, um atrás do outro, presos pelo short, os que não possuíam lugar para prender, era conseqüentemente amarrado na roupa intima mesmo, - a gente se virava com o que dava - e levamos todos para fora, fizemos um tour pela faculdade – afinal o momento de terror das tintas já havia passado, só faltava agora à humilhação de sair nesse estado pelas ruas e ouvir crianças menores que você perturbando e torrando sua paciência até o local em que se instalava o bar.As vezes ficávamos calados porque um dia eles saberiam que a vez deles iriam chegar, ou não. – e deixamos todos no estacionamento. Lá alguns veteranos estariam esperando com o carro de som na frente, tocando as mais variadas musicas, - cada uma mais apelativa do que a outra, como sempre, predominava pagode e axé, - só esperando para poder armamos o nosso bloco de carnaval.

Sim.

Bloco, pois os veteranos estariam dentro como se fossem os foliões e os calouros seriam os cordeiros e teriam que tomar conta de nós todos.

Passado esse momento de humilhação completa, levamos todos para ir ao encontro da felicidade: o bar, afinal eles precisavam se “hidra-álcoolizar” e nós também, pois não foi brincadeira tomar conta de 180 calouros em baixo de sol quente.

É muito cansativa essa vida de Universitário, mas o que importa nisso tudo é que os calouros foram batizados, voltaram para suas respectivas casas já à noite, porém felizes e sem reclamação alguma, afinal o momento pior já havia passado, o que poderia ser pior do que o trote? Somente passar o resto do primeiro semestre jogando dominó na faculdade, ou melhor, esperando a boa vontade de um veterano lhe convidar para participar de algum campeonato.

Essa era outra tradição da Universidade Católica, o Dominó, quem entra na faculdade tem que passar pela matéria Introdução ao estudo do Dominó, claro, que é uma matéria , assim como qualquer outra da grade e requer atenção e disciplina ,caso você falte por muito tempo é automaticamente colocado de quarentena. Não é muito difícil passar nessa matéria, basta tomar gosto pelos estudos, claro, da gênese do dominó. Passando essa matéria os calouros pegam Dominó I, Dominó II, Dominó III, e por fim VAP – “Vagabundologia” aplicada ao Direito, até que, passadas essas matérias certamente você deixa de ser um Calouro ou Pseudo Calouro e passará a ser um Veterano.

Eu tenho plena convicção que esse dia não será esquecido de suas respectivas cabeças pelo resto de suas vidas ou até mesmo enquanto seu curso durar.

A vida não pode ser sempre a festa que esperávamos, mas, enquanto estamos aqui, deveríamos dançar

E por falar em dançar....

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